Yebel é uma cordilheira de mais de cinquenta milhas de extensão, mas tão estreita que só figura nos mapas como o rasto de um diminuto verme que segue de Norte para Sul. Dos seus cumes apenas se vê o deserto da Arábia, donde sopram os ventos do Este, que os viticultores de Jericó tanto maldizem. As faldas da cordilheira do Yebel estão cobertas por uma espécie de capa arenosa depositada pelo Eufrates e destinada a formar uma linha divisória entre as pradarias de Moab e de Ammon, que noutro tempo faziam parte do deserto.
Yebel significa leito de muitos arroios que, interrompendo a via romana formavam sulcos pelos quais na estação chuvosa corriam pequenos ribeiros que iam desaguar no Jordão ou no Mar Morto.
Um desses arroios formava o leito do rio Jablok, por onde, certa manhã, muito cedo, caminhava um viajante que, na aparência, não teria mais de quarenta e cinco anos. A sua barba que, noutro tempo, seria de um castanho muito escuro, ainda conservava muito da sua beleza, caindo-lhe, já grisalha, sobre o peito. O seu semblante, escuro como chocolate, era em parte envolvida por um vermelho Kufiyeh, nome que ainda hoje os filhos do deserto dão aos lenços que lhes cobrem a cabeça. De quando em quando, levantava os olhos que eram escuros e grandes. Trazia aqueles fatos tão comuns no Oriente do qual não se pode fazer uma descrição detalhada porque estava oculto por um pequeno palanquim colocado sobre o dorso de um camelo branco, gigantesco.
O animal chamava a atenção pela cor e pela envergadura do seu corpo; pela grandeza dos pés, a musculatura; o pescoço longo, delgado, arqueado como o dos cisnes, a ponta do focinho muito distanciada dos olhos e afilada. O seu passo lento, cauteloso e seguro denotava o seu sangue sírio, absolutamente incomparável.
Quando o camelo atingiu a desembocadura do arroio, o viajante encontrava-se para além dos confins do El-Belka, o antigo Ammon. Na sua frente, tinha o sol encoberto pelos vapores da neblina e o deserto interminável; não as regiões arenosas onde sopra o simum, mas as regiões onde a verdura é menos frequente e onde o terreno está semeado de penhascos e de pedras cinzentas e negras. Espinheiros, carvalhos e outros arbustos tinham ficado para trás, quase alinhados e em grupo, como se tivessem chegado até ali e depois se tivessem detido a contemplar a árida planura, temerosos, sem terem coragem para se aventurar ao longo dela.
O camelo parecia seguir uma determinada direção guiado pela mão do homem. O palanquim oscilava, subia e descia como uma nave à mercê das ondas, mas o viajante, protegido pelo seu toldo verde, parecia não dar por nada do que se passava em seu redor. Os seus olhos fixos, imóveis, pareciam entregar-se a um tranquilo sonho. Homem e animal avançavam como se fossem dirigidos por uma mão invisível.
Pelo espaço de duas horas, o camelo caminhou em direção ao Oriente. E o viajante nunca mudou de posição, nem olhou para a direita ou para a esquerda.
Agora tudo era estéril e árido em redor. A própria areia endurecera e formava uma ligeira camada que estalava a cada passo do camelo. O Yebel tinha desaparecido na distância e parecia estar-se no leito de um oceano sem limites.
Ao meio dia, o camelo parou espontaneamente e emitiu um lamento, como que a pedir compaixão.
O dono sobressaltou-se, como se acordasse de um longo sono. Levantou as cortinas do hudad, olhou o sol, examinou a região em todos os sentidos, minuciosamente, como que para determinar a sua posição. Por fim, satisfeito com o exame, respirou a plenos pulmões e agitou a cabeça como que a dizer: "Por fim!" Depois, cruzou a mão sobre o peito, inclinou a cabeça e orou em silêncio. Cumprido este dever preparou-se para se apear. Saiu-lhe, então, dos lábios um som gutural, sem dúvida familiar aos camelos de Jafa: "ik!, ik!", ou seja o sinal para que se ajoelhasse. O camelo obedeceu lentamente e o viajante, procurando apoio no delgado pescoço do animal, saltou para a areia.
O homem era admirável nas proporções do corpo, mais entroncado que alto; a fronte era baixa e espaçosa; o nariz adunco; os olhos em forma de amêndoa; os cabelos abundantes e crespos desciam-lhe pelas costas em muitas tranças e davam-lhe um aspecto original. Envergava um "kamis", camisa de algodão branco, que lhe chegava até aos pés, com mangas estreitas abertas à frente e bordado no pescoço e no peito. Por cima do "kamis" trazia uma túnica de lã castanha, chamada "aba", bastante ampla, de mangas curtas, forrada inteiramente de seda e algodão e orlada por uma franja amarela escura. Calçava sandálias, atadas ao tornozelo com correias de pele flexível. Um cinturão apertava-lhe graciosamente o "kamis" à cintura. Não era portador de nenhuma arma, nem mesmo do cajado que se usa para conduzir os camelos, pelo que se podia concluir que a sua missão era de carácter pacífico.
O viajante esfregou as mãos, bateu com os pés no chão, como que para os desentorpecer, e deu vários passos em volta do seu fiel quadrúpede, que se tinha deitado, satisfeito com a pouca erva que tinha encontrado. O homem detinha-se, entretanto e fazendo pala com a mão sobre os olhos, olhava ao longe, como se esperasse alguém de cuja chegada estava certo. Da liteira tirou uma esponja e um pequeno recipiente com água e lavou os olhos, o nariz e o focinho do camelo. Tirou depois um pano redondo, listado de branco e vermelho, um montão de varinhas e uma estaca grossa que cravou no solo. Dispôs, à sua volta as varinhas e cobriu-o com um pano à laia de tenda, o que lhe deu a ilusão de se encontrar dentro de uma casa. Sempre da mesma caixa, que trazia no palanquim, tirou um tapete de forma quadrada e estendeu-o no chão da tenda anteriormente erguida.
Meteu então uns punhados de favas secas num saco que dependurou do pescoço do camelo e voltou a esquadrinhar a imensidão do deserto sobre o qual o sol deixava cair os seus raios de fogo.
— Virão — disse tranquilamente. — Quem me guiou a mim, os guiará também a eles. Preparar-me-ei para os receber.
De um cesto de salgueiro, que fazia parte do mobiliário, tirou o necessário para um pequeno almoço: pratos de barro, vinho em pequenos recipientes de pele, carne de carneiro fumada, romãs sírias, tâmaras da Arábia central, queijo como o leite talhado de David e pão feito com levedura procedente do forno da cidade.
Quando tudo estava preparado, saiu da tenda e voltou a olhar o deserto. Ao longe, um ponto negro ia crescendo e, pouco a pouco, tomou proporções definidas. Era um camelo alto e branco, transportando a liteira habitual dos viajantes do Indostão.
O egípcio cruzou as mãos sobre o peito e elevou os olhos ao céu.
— Só Deus é grande — exclamou reverentemente e com os olhos cheios de lágrimas.
O recém-aparecido aproximou-se e parou. Contemplou o camelo ajoelhado, a tenda e O homem que estava em pé junto à entrada, cruzou as mãos, baixou a cabeça e pôs-se a orar silenciosamente. Depois desceu do camelo e avançou para o egípcio que já ia ao seu encontro. Durante um momento olharam-se fixamente, depois abraçaram-se e ambos puseram o braço direito sobre o ombro esquerdo do outro e a mão esquerda em volta da cintura, encostando, ao mesmo tempo o queixo, primeiro sobre o ombro esquerdo, depois sobre o direito.
— A paz seja contigo, ó servo do verdadeiro Deus! — exclamou o estrangeiro.
— Bem-vindo sejas, ó irmão, na fé verdadeira. E a paz esteja contigo também — replicou ferverosamente o egípcio.
O recém-chegado era um homem alto e magro, de cara grande, olhos encovados, cabelo e barba brancos e tez bronzeada, cor de canela. Não trazia armas e vestia como os índios; cobria-lhe a cabeça um xale que caía sobre o pescoço em pregas muito marcadas; envergava uma túnica curta que deixava entrever uns calções compridos, apertados no tornozelo. Em lugar de sandálias, calçava uns tamancos de pele vermelha, terminados em bico: à excepção disto, vestia, da cabeça aos pés, de branco. O seu porte era imponente; o seu ar arrogante e severo.
— Só Deus é grande — exclamou, desfazendo o abraço.
— Benditos sejam os que O servem — replicou o egípcio. — Mas esperemos — acrescentou, — esperemos; o nosso companheiro já aí vem.
Voltaram-se para o Norte, donde vinha um terceiro camelo, tão branco como os deles, e que avançava baloiçando como um navio no mar alto.
Esperaram, junto um do outro, silenciosos, até que chegou o viageiro que se apeou e se adiantou ao encontro deles.
— A paz seja contigo, meu irmão — disse abraçando o índio.
E este replicou:
— Faça-se a vontade de Deus!
O último viageiro, em nada se parecia com os amigos: era mais magro, de tez branca, uma mata de cabelos ondulados coroava-lhe a cabeça e os seus grandes olhos negros denotavam uma inteligência, natureza sincera e carácter varonil. Tinha a cabeça descoberta e também não trazia armas. Devia ter mais de cinquenta anos; mas não os aparentava. A idade apenas imprimira certa severidade à sua fisionomia e certa moderação às suas palavras; mas não lhe enrugara o rosto, nem branqueara os cabelos. Se não nascera em Atenas, pelo menos os seus antepassados deviam ter sido gregos.
Quando deixou de o abraçar, o egípcio exclamou, com voz trémula:
— Deus fez-me chegar primeiro; sou pois o escolhido para servir de anfitrião aos meus irmãos. A tenda está armada e a mesa posta.
Deixai-me, pois, cumprir o meu dever.
Pegou-lhes pela mão, fê-los entrar; tirou-lhes as sandálias, lavou-lhes os pés e deitou-lhes água sobre as mãos, que depois eles secaram com toalhas.
Depois dele próprio lavar também as mãos, acrescentou:
— Cuidemos agora das nossas pessoas, oh irmãos, como o exige o nosso dever; comamos para recobrarmos as forças necessárias para levar a bom termo a nossa missão. Enquanto comermos dar-nos-emos a conhecer mutuamente; cada um dirá o seu nome, a sua pátria e os seus propósitos.
Acompanhou-os ao lugar que lhes destinara e fê-los sentarem-se na sua frente.
Este encontro produzia-se no ano de 747 da fundação de Roma e no mês de Dezembro, e o Inverno reinava na região do Mediterrâneo Oriental. Nesta época, todo o que atravessa o deserto não pode passar muito tempo sem sentir grande apetite. Os três viajantes, reunidos sob a tenda, não eram uma excepção a esta regra. Sentiam-se famintos e almoçavam com apetite. Uma vez saboreado o vinho, começaram a conversar:
— Não há nada tão agradável para um viageiro do que ouvir-se chamar pelo seu nome num país desconhecido — disse o egípcio. — Vamos estar muitos dias juntos e chegou a altura de começarmos a conhecer-nos. Portanto, se estiverdes de acordo, o último a chegar será o primeiro a falar.
Muito devagar, como pessoa acostumada à prudência, o grego começou:
— O que tenho para vos dizer, oh irmãos, é tão estranho que não sei por onde começar. Ainda não cheguei a compreender-me a mim mesmo; mas estou certo de que o que faço é o que o Mestre quer.
Deteve-se enquanto os seus companheiros, como ele, baixaram os olhos.
— No Oriente — acrescentou, pondo fim à pausa, — existe um país que jamais poderá ser esquecido. O mundo deve-lhe muitíssimo, e poder satisfazer as dúvidas é coisa que proporciona aos homens grande prazer. Não falarei de belas artes, de filosofia, de oratória, de poesia ou de guerra. Oh, meus irmãos! A sua glória brilhará esplendorosamente e por seu meio. Aquele que procuramos será conhecido em toda a terra. O país de que vos falo é a Grécia. Eu sou Gaspar, filho de Cleonte, ateniense. Os meus antepassados dedicaram-se inteiramente ao estudo e deles herdei a mesma inclinação. Dois dos nossos filósofos, os maiores, ensinam: um, que existe uma alma imortal; o outro, que há um Deus único, infinitamente justo. Eu escolhi as teorias destes dois filósofos como as únicas dignas de atenção, porque me parecia que podia existir uma relação desconhecida entre Deus e a alma. Sobre este tema a mente pode discutir até certo ponto; mas depois encontra uma barreira intransponível, chegada à qual nos vemos obrigados a pedir ajuda. Assim fiz, mas não obtive resposta alguma. Desesperado, afastei-me da cidade e das escolas.
O índio deixou transparecer um sorriso de aprovação.— Em Tessália — prosseguiu o grego, — existe uma montanha famosa, chamada Olimpo, conhecida como a morada dos deuses e onde habitava Zéns, considerado pelos meus compatriotas como o deus supremo. Subi-a e no seu topo encontrei uma caverna, na qual me detive, entregando-me a uma meditação, da qual esperava uma revelação. Crendo num Deus invisível e omnipotente, esperava que, uma vez a ele entregue, Este me desse a sua ajuda.
— E Ele respondeu! — exclamou o índio, levantando as mãos da peça de seda sobre a qual estava ajoelhado.
— Escutai, irmãos — disse o grego, acalmando-se com dificuldade. — A porta da minha eremita ficava sobranceira ao mar de Salônica. Um dia, de uma embarcação que navegava não muito distante dali, vi cair um homem ao mar. Nadou até à margem. Recolhi-o e cuidei dele. Era um judeu muito versado na história e nas leis do seu povo; por ele vim a saber que, na realidade, existia o Deus das minhas súplicas, o qual tinha dado a sua lei e tinha sido durante vários séculos o Senhor e Rei dos judeus. Porventura, não seria esta a revelação, pela qual há tanto tempo sonhava? A minha fé não tinha sido infrutífera. Deus tinha-me respondido! O homem que me tinha sido enviado não ficou por aqui nas suas revelações. Acrescentou que os profetas declararam que Deus voltaria, que se esperava, de um momento para outro, a sua chegada em Jerusalém.
O grego deteve-se e o seu semblante enevoou-se.
— É verdade — disse depois de uma pausa, — é verdade que aquele homem me informou que, assim como Deus e a Sua revelação de que me falava só tinha sido feita para os judeus, assim seria da segunda vez. "E não acontecerá nada para o resto do mundo?" perguntei. "Não, respondeu-me altivamente, não. Nós somos o Seu povo escolhido." Mas a sua resposta não me desencorajou. Por que razão um Deus semelhante, havia de limitar o Seu amor e a Sua bondade a um só reino e a uma só raça? Quando o judeu partiu e me encontrei novamente só, elevei ao céu nova súplica: que me fosse permitido ver o Rei e adorá-Lo. Uma noite, sentado à porta do meu retiro, tentei meditar sobre os mistérios da existência; de repente, no mar que se estendia a meus pés, ou antes, na escuridão que cobria a sua superfície, vislumbrei uma estrela que começava a brilhar. Despontava lentamente, foi-se acercando e deteve-se na colina, sobre a minha porta, de modo que a sua luz me banhava em cheio. Prostrei-me, adormeci e ouvi no meu sonho uma voz que me dizia:
— Gaspar, a tua fé triunfou. Bendito sejas! Com mais duas pessoas vindas das mais distantes regiões da terra, verás Aquele que há-de vir, serás testemunha da Sua vinda e, em qualquer ocasião darás fé disso. Levanta-te cedo, amanhã, e vai ao seu encontro confiado no Espírito que te guiará.
Ao raiar da aurora despertei, abandonei as minhas vestes de eremita e vesti-me com os meus trajos antigos. Com o dinheiro que tinha levado comigo da cidade, embarquei num barco que me levou a Antioquia. Ali, adquiri um camelo. Parei em Emeso, em Damasco, Bostia e Filadélfia, até chegar aqui. A minha história, irmãos!, acaba aqui. Permitam-me que agora escute a vossa.
O egípcio e o índio entreolharam-se; a um sinal do primeiro, o outro inclinou-se e principiou o relato:
— O nosso irmão falou perfeitamente. Oxalá as minhas palavras sejam tão sábias como as suas!
Interrompeu-se, refletiu um pouco e prosseguiu:
— Podeis chamar-me, irmãos, pelo nome de Belchior. Falo-vos numa língua que, se não é a mais antiga do mundo, foi a primeira a ser escrita: o sânscrito. Sou hindu pelo nascimento. O meu povo foi o primeiro a trilhar o caminho da Sabedoria, o primeiro a dividi-la em diferentes ramos da Ciência, o primeiro a embelezá-la. Suceda no Futuro o que suceder, os quatro "Vedas" devem ser conservados, pois são as primeiras fontes da religião e da cultura do espírito. Nasci brâmane, por isso a minha vida foi sempre regida por leis, mesmo nos atos mais insignificantes, até agora. O meu primeiro alimento, o meu batizado, a primeira vez que vi o sol a minha consagração na primeira ordem, foram celebrados com leituras sagradas e com rígidas cerimônias. Não podia andar, comer ou dormir, sem o risco de violar alguma lei. Segundo os graus de culpa, a minha alma foi de um céu a outro, ou era condenado a converter-me na vida de um verme, de uma mosca, de um peixe ou de um néscio. A recompensa pela perfeita observância era a felicidade ou a absorção no seio de Brama, que, mais do que uma existência, era o descanso absoluto.
O hindu entregou-se, por momentos, aos seus pensamentos; depois prosseguiu:
— O término do primeiro período da vida de um brâmane é a sua vida de estudante. Quando já estava preparado para entrar no segundo, ou seja, quando chegou o momento de me casar e de constituir família, a minha alma debatia-se com dúvidas, chegando a duvidar da existência de Brama; numa palavra, era um herege. Apesar das trevas em que me encontrava, tinha descoberto uma luz lá no alto e ansiava por servir-me de tão poderosa chama. Por fim ah!, quantos anos de fadigas e interrogações — encontrei a luz do dia! Por fim, tinha encontrado o princípio da vida, o elemento principal das religiões, o melhor e mais forte laço entre a alma e Deus — o amor!
O semblante enrugado do índio ruborizou-se. Juntou as mãos fortemente e seguiu-se um silêncio durante o qual os seus companheiros o contemplavam, especialmente o grego, com os olhos marejados de lágrimas, finalmente reatou o seu relato:
— A ilha de Ganga situa-se no lugar em que as águas do Ganges se sepultam no oceano índico. à sombra do templo construído pelo sábio Kapila, na companhia dos discípulos do santo, ansiei encontrar descanso. Duas vezes ao ano acorriam peregrinações hindus e a miséria das gentes fez aumentar o meu amor. Combati ardentemente o impulso de falar, porque uma só palavra contra Brama ou contra a trindade dos Sutras, tinha sido a minha perdição, e qualquer ato de cortesia, uma bênção outorgada ou um copo de água que tivesse dado aos bramanes desterrados que, com frequência, morriam sobre as areias escaldantes do deserto, tinha sido a minha condenação, passaria a ser um daqueles párias, sem país, sem família, até mesmo sem casta. Mas o amor venceu! Falei aos discípulos, no templo; expulsaram-me dali. Falei aos peregrinos e puseram-me fora da ilha, à pedrada. Tentei pregar nos caminhos e os meus ouvintes fugiam ou atentavam contra a minha vida. Enfim, em toda a Índia não havia lugar onde pudesse buscar asilo ou salvação. Nem mesmo entre os bandidos, porque mesmo nadando no pecado, ainda criam em Brama. No meio da desgraça, procurava a solidão para me esconder de todos, exceto de Deus. Segui o curso do Ganges até à sua nascente, nos Himalaias. Quando cheguei ao estreito de Hurdward orei pela minha raça e julguei-me perdido para sempre. Ali, no meio da terra, onde o Indo, o Ganges e o Bramaputra brotam para correr pelos seus leitos respectivos, onde a Natureza, regressando às suas primitivas condições e segura da sua imensidão, convida o sábio e o desterrado com promessas de salvação a um e de saudade ao outro, ali permaneci para viver só com Deus, rezando, jejuando, esperando a morte.
Baixou o tom da sua voz, e as suas mãos ossudas juntaram-se em fervente nó.
— Uma noite, encaminhando-me para a beira do lago e conversando com o meu único ouvinte, — o silêncio, — inquiri: "Quando virá Deus redimir-me? Não haverá salvação?" Quando, de repente, uma luz brilhou trémula, fora da água; uma estrela elevou-se e dirigiu-se para mim, detendo-se por sobre a minha cabeça.
O seu esplendor deslumbrou-me. Enquanto jazia no solo, ouvi uma voz infinitamente suave:
— O teu amor venceu. Bendito sejas, filho da índia! A redenção está próxima. Verás o Redentor juntamente com mais duas pessoas vindas dos extremos do mundo e serás testemunha da Sua vinda. Amanhã muito cedo, levanta-te, vai ao encontro dessas duas pessoas e põe toda a tua fé no Espírito que te guiará.
E desde então, a luz permaneceu comigo, anunciando-me a presença do Espírito. Na manhã seguinte, regressei ao mundo habitado. Cheguei a Ispahan, comprei um camelo e dirigi-me a Bagdad sem esperar pelas caravanas. Viajei sozinho, mas sem temor, porque o Espírito estava e ainda hoje está comigo. Veremos o Redentor, falar-Lhe-emos, adorá-Lo-emos! Esta é a minha história.
O grego expressou vivamente a sua alegria, depois do que o egípcio começou a falar com a sua gravidade característica:
— Saúdo-vos, meus irmãos! Se desejais escutar-me, dir-vos-ei quem sou e como fui impelido a vir aqui. As vossas palavras foram ditadas pelo Espírito, e o Espírito faz com que eu as compreenda. Cada um de vós falou do respectivo país; deixai, agora, que vos fale de mim e do meu povo. Sou Baltasar, o egípcio.
Estas palavras foram ditas lentamente e com uma dignidade tal que os seus ouvintes se inclinaram.
— Muitas são as glórias que posso atribuir à minha raça — prosseguiu; — mas contentar-me-ei com uma: a História começou connosco. Nós fomos os primeiros a escrever nos anais os fatos acontecidos. Nas fachadas dos palácios e dos templos, nos obeliscos, nas paredes dos túmulos, escrevemos os nomes dos nossos reis e os seus feitos e aos delicados pergaminhos confiamos a sabedoria dos nossos filósofos e os segredos da nossa religião; todos os segredos menos um, do qual vos falarei agora. Quando os nossos pais vieram do deserto distante, trouxeram consigo a história do mundo e do dilúvio que foi transmitida pelos filhos de Noé aos Ârios, e ensinaram os conceitos de Deus, do Criador, da alma imortal como Deus. Quando a missão que agora nos chama estiver terminada, se quiserdes acompanhar-me, ou vos mostrarei a sagrada biblioteca dos nossos sacerdotes, onde se encontra, entre outros, o Livro dos Mortos no qual se encerra o ritual que a alma deve observar, depois que a Morte a envia ao Juízo eterno Estas ideias, Deus e a alma imortal foram levadas por Mizraim para lá do deserto até às margens do Nilo, fáceis e simples na sua pureza primitiva, como é tudo o que provém diretamente das mãos de Deus. Assim era também o primeiro rito, um hino e uma prece adequada a uma alma satisfeita, cheia de esperanças e enamorada do seu Criador.
Ao chegar aqui, o grego ergueu as mãos e exclamou:
— Oh! A luz entra-me pelos olhos.
— E também a mim — disse o hindu com igual fervor.
O egípcio olhou-os bondosamente e, depois, prosseguiu:
— Nasci em Alexandria, príncipe e sacerdote recebi uma educação que em breve me desgostou. Parte da fé que se me impunha, era que depois da morte, uma vez destruído o corpo, a alma havia de começar a subir lentamente até à mais alta e última existência e isto com a completa independência da vida levada na terra. Se, conforme me ensinara o meu mestre, Deus era justo, porque não havia distinção alguma entre os bons e os maus? Finalmente, cheguei à conclusão de que a morte era apenas o ponto de separação entre os maus que eram abandonados e castigados, e os bons que eram elevados a uma vida mais nobre. Esta descoberta levou-me a outra pergunta: porque deve a verdade ser considerada como um segredo para consolo egoísta dos sacerdotes? Motivo para esse segredo não o havia. A filosofia, pelo menos, permite-nos a tolerância. No Egito, tínhamos Roma em lugar de Ramsés. Um dia, preguei no bairro mais belo e mais populoso de Alexandria, perante um público do Oriente e do Ocidente. Preguei acerca de Deus, da alma, do justo e do mau, do céu que é a recompensa das almas virtuosas. Vós, Belchior, fostes apedrejado: os meus ouvintes, primeiro, surpreenderam-se, depois romperam a rir. Falei de novo e tornaram-me alvo de insultos, ridicularizaram o meu Deus e escureceram o meu paraíso com o seu escárnio. Meditei longamente sobre qual poderia ser a causa do meu fracasso. Subi o curso do rio e a uma jornada da cidade, encontrei uma aldeia de pastores e agricultores. Ao anoitecer, reuni toda a população, homens e mulheres, sem excetuar os mais pobres; dirigi-lhes as mesmas palavras e não se riram. à terceira reunião, constitui-se uma sociedade religiosa. Então, regressei à cidade. Seguindo as margens do rio, sob as estrelas que me pareceram mais brilhantes e próximas, tive esta ideia de começar uma reforma, de não visitar os palácios dos poderosos e dos ricos, mas os tugúrios dos pobres e dos humildes. Propus-me sacrificar-lhe a minha vida. O meu primeiro passo foi arrendar as minhas extensas propriedades para ajudar com os seus produtos os que sofriam. Desde aquele dia, irmãos, peregrinei ao longo do Nilo, pelas aldeias e em todas as tribos, pregando um Deus, uma vida reta e a sua recompensa no céu. Mas durante os anos assim passados, uma ideia me atormentou: se eu morresse, que aconteceria à causa que iniciara? Desapareceria comigo? Procurei criar uma organização como termo conveniente para a coroação da minha obra; mas fracassou. Irmãos, o mundo está atualmente em tais condições que para restaurar a fé miszraimica o reformador necessita algo mais que a sanção dos homens; não há-de aparecer somente em nome de Deus, mas tem de acompanhar com provas as suas afirmações, tem de demonstrar tudo quanto diz, mesmo a própria divindade. E quem, nestes tempos, pode ser o portador da fé para os homens a tal extremo, se não o próprio Deus? Agora compreendereis porque fracassei na minha empresa. Eu tinha a aprovação divina. A ideia de que o meu trabalho teria de se malograr acabrunhara-me em extremo. Acreditava na oração e, a fim de dar eficácia e pureza às minhas orações, como vós, meus irmãos, retirei-me do mundo habitado e procurei consolo na solidão. Pelo espaço de mais de um ano, acolhi-me à montanha. Alimentei-me de tâmaras; as orações alimentavam e elevavam-me o espírito. Uma noite, dirigi-me para um horto, próximo de um lago e murmurei esta oração: "O mundo está a morrer. Quando virás? Porque não poderei ver a Redenção, meu Deus?". A água cristalina brilhava ao reflexo das estrelas. Uma delas pareceu abandonar o seu lugar e vir à superfície, cintilando de uma maneira tal que obrigava a abaixar os olhos. Depois encaminhou-se para mim e parou sobre a minha cabeça, como se uma mão invisível a conduzisse. Cai por terra e cobri o rosto. Uma voz, que não era terrena, disse-me:
— Os teus trabalhos deram-te a vitória. Bendito sejas, filho de Mizraim! A redenção virá. Com duas outras pessoas, chegadas dos confins do mundo, tu verás o Salvador. De manhã, muito cedo, levanta-te e vai ao seu encontro e quando chegares à cidade de Jerusalém, perguntai ao povo: "Onde está Aquele que nasceu rei dos Judeus? Porque nós vimos a sua estrela sair de Oriente e fomos enviados aqui para O adorar". Põe toda a confiança no Espírito que será o teu condutor.
E a luz conduziu-me a Menfis, onde me preparei para atravessar o deserto. Adquiri o meu camelo e, sem descanso, vim por Suez e Kufileh, ao longo das planuras de Moab e de Ammon. irmãos, Deus está connosco!
Deteve-se e depois, com insólita prontidão, levantaram-se os três contemplando-se.
— Existia um motivo que nos inspirava a falar dos nossos povos e das suas tradições — prosseguiu. — O Patriarca que sobreviveu ao Dilúvio tinha com ele três filhos e suas famílias, que foram os povoadores do mundo. Na antiga Ariana Vaejo, a conhecidíssima região da Síria no coração da ásia, separaram-se. A índia e o longínquo Oriente receberam os filhos do primeiro filho; os descendentes do mais novo, pelo Norte, desembarcaram na Europa; os do meio, através dos desertos próximos do Mar Vermelho, passaram para a áfrica, e embora na sua maioria habitem ainda em tendas e sejam nômades, alguns deles construíram as suas moradas ao longo do Nilo.
Os três juntaram as palmas das mãos, movidos pelo mesmo impulso.
Houve um silêncio interrompido pelos suspiros e santificados pelas lágrimas, pois a alegria que a todos invadia era inefável. As suas mãos separaram-se e juntos saíram da tenda. O deserto estava tranquilo como o céu. O sol caminhava rapidamente para o ocaso. Pouco depois, a tenda foi levantada e os víveres que tinham sobrado metidos nas arcas. Os três amigos subiram para os palanquins e puseram-se a caminho, calados, indo o egípcio na dianteira.
A lua começou a despontar lentamente. De súbito, diante deles fulgurou uma sutilíssima chama. Enquanto a contemplavam, a pequena chama transformou-se numa labareda de um esplendor imenso. Os corações dos três viajantes pulsaram com violência; as suas almas estremeceram e exclamaram em uníssono:
— A estrela! Deus está connosco!
Na parte oriental da muralha de Jerusalém, encontram-se as portas de Jafa e de Belém. Antes de David conquistar Sion, existia naquele lugar uma cidadela; mas quando o filho de Jessé derrubou Jabús e começou a edificar, a cidadela ficou no extremo noroeste dos novos muros, defendidos por uma torre mais impo nente do que a antiga. Mas o campo e a porta foram respeitados, porque os caminhos não podiam ser transferidos para nenhum outro ponto, enquanto o recinto que os circundava se convertera num verdadeiro centro de comércio. Nos tempos de Salomão, havia naquele lugar grande tráfico, devido aos comerciantes egípcios e aos ricos negociantes de Tiro e Sidón. Três mil anos depois, um peregrino, carecido de víveres, não tem mais que encaminhar-se para a porta de Jafa, onde ainda reina a animação e uma pessoa pode avaliar o que seria aquele lugar nos tempos de Herodes, o seu fundador. Transporte-se o leitor com a imaginação àqueles tempos e àquele mercado.
Segundo o calendário judeu, o encontro dos três personagens apresentados nos capítulos precedentes, ocorreu na tarde do vigésimo quinto dia do terceiro mês do ano, isto é, o dia 25 de Dezembro; o ano era o segundo da olimpíada 193 ou 747 de Roma, o 67 de Herodes, o Grande, e o 35 do seu reinado, o quarto antes da Era Cristã. Naquele dia, o mercado de Jafa estivera muito animado. As portas maciças tinham sido abertas ao despontar da alva e até à terceira hora tinham desfilado por elas os tipos mais variados: o soldado romano, o judeu, o samaritano, o atleta grego, e os lutadores dos circos de Roma.
Muita gente se retirara já e a multidão continuava a errar, sem aparente diminuição. Entre os chegados recentemente, havia um grupo composto por uma mulher, um homem e um burro. O homem estava junto da cabeça do animal e pegava nas rédeas de coiro, servindo-lhe de apoio um bordão que parecia ter sido escolhido para o uso duplo de tocar o animal e de apoio; o seu trajo era semelhante aos dos judeus, que por ali andavam, com a excepção de que tinha a aparência de novo. O seu semblante dava-lhe a aparência de uns cinquenta anos, idade que os cabelos brancos, que lhe pintalgavam a barba, confirmavam. A mulher vestia uma túnica de lã e um véu branco adornava-lhe a cabeça e o pescoço.
Um individuo aproximou-se do grupo, perguntando:
— Não sois José de Nazaré?
— Assim me chamo — assentiu José voltando-se gravemente. — E vós? Ah! A paz esteja convosco, rabi Samuel.
O rabi respondeu:
— Paz para vós, para a vossa casa e vossos criados.
...CONTINUA!
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