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Primeiro Capítulo: Guerra e Paz, Edição Completa

Primeiro Capítulo: Guerra e Paz, Edição Completa

Capítulo I

volume 1 | Livro Primeiro | Primeira Parte


Guerra e Paz, Edição Completa Texto Integral
1972 páginas

ISBN:
978-85-66798-13-5 e 978-85-66798-14-2


Preço: R$ 5,99

— Pois bem, meu príncipe. Gênova e Luca mais não são do que apanágios, domínios, da família Bonaparte. Não, previno-o de que, se me diz que não teremos guerra, se se permitir ainda atenuar todas as infâmias, todas as atrocidades desse — Anticristo (palavra de honra, para mim, é o que ele é), desconheço-o, deixo de considerá-lo meu amigo, meu fiel servidor, como costumo dizer. Vamos, vejamos, como está, como está? Bem veio que lhe meto medo. Sente-se e conte-me novidades.

Foi com estas palavras que em Julho de 1805 a conhecida dama de honor, íntima da imperatriz Maria Fiodorovna. Ana Pavlovna Scherer, acolheu o príncipe Vassili, pessoa importante e de alta estirpe, o primeiro dos convidados a chegar à sua recepção daquela noite. Havia algum tempo já que Ana Pavlovna tossicava, estava com gripe, como ela dizia — gripe era então um novo vocábulo, que poucas pessoas ainda empregavam. Nessa mesma manhã tinha ela mandado entregar, por um lacaio de libré encarnada, a toda a gente, indistintamente, um bilhetinho redigido nestes termos:


Se não tem nada melhor a fazer. Senhor Conde — ou então: meu príncipe —, e se a perspectiva de passar a noite em casa de uma pobre doente não o assusta muito, sentir-me-ei encantada de o ver em minha casa entre as 7 e as 10 horas.

Annette Scherer.


— Meu Deus, que violência! — retorquiu o príncipe no seu uniforme de gala, o peito coberto de condecorações, na face achatada um ar florescente, sem ligar a mínima importância a semelhante acolhimento.

Exprimia-se nesse francês precioso, que falavam e em que até pensavam os nossos avós, e a que adicionavam esse sotaque protetor, essas entoações suaves tão naturais a quem envelheceu na sociedade e com prestígio na corte. Aproximou-se de Ana Pavlovna, beijou-lhe a mão, exibindo a calva perfumada e reluzente, e sentou-se, tranquilamente, num divã.

— Antes de mais nada, diga-me, como tem passado, querida amiga? Tranquilize este seu amigo — prosseguiu ele no mesmo tom e numa voz em que, sob a cortesia e a afabilidade, transpareciam a indiferença e até mesmo uma certa mofa.

— Como é que uma pessoa há-de passar bem de saúde.., quando, moralmente, não pode deixar de sofrer? Quem é que no nosso tempo há-de estar sereno, desde que seja pessoa de coração? — redarguiu Ana Pavlovna. — Vai ficar toda a noite, não é verdade?

— E a festa na Embaixada de Inglaterra? É hoje quarta-feira. Não posso deixar de aparecer — disse o príncipe. — Minha filha ficou de passar por aqui para me levar.

— Julguei que a festa tinha sido adiada. Confesso-lhe que todas estas festas e todos estes jogos de artifício começam a tornar-se insípidos.

— Se tivessem sabido que era esse o seu desejo, teriam adiado a festa — tornou o príncipe, o qual, como um relógio certo, tinha por hábito dizer, em determinadas circunstâncias, frases que ele próprio não esperava que fossem acreditadas.

— Não me atormente. Afinal, que decidiram em relação ao telegrama de Novosiltzov? O senhor costuma saber tudo.

— Que lhe hei-de eu dizer? — volveu o príncipe num tom frio e enfastiado. — Que decidiram? Decidiram que Bonaparte chegou a ponto de não poder recuar e eu acho que está aqui, está a acontecer-nos o mesmo.

O príncipe Vassili falava sempre com indolência, como um ator que recita um papel há muito decorado. Ana Pavlovna, pelo contrário, apesar dos seus quarenta anos, toda ela era vivacidade e expansão.

Ser entusiasta era a sua função social, e até mesmo quando não era essa a sua disposição natural procurava sê-lo, para que as pessoas suas conhecidas se não sentissem desapontadas. O sorriso constrangido que lhe andava sempre no rosto, conquanto não dissesse muito bem com os seus traços já fatigados, denunciava, como acontece nas crianças mimadas, a existência de um pecadilho, pecadilho de que ela não queria, nem podia, nem mesmo julgava útil corrigir-se.

No decurso da conversa sobre política. Ana Pavlovna exaltou-se.

— Ah! Não me fale da Áustria! Talvez eu seja uma parva, mas estou convencida de que a Áustria não quis nem quer a guerra. Está a atraiçoar-nos. É à Rússia sozinha que compete salvar a Europa. O nosso benfeitor conhece a alta missão a que está destinado e cumpri-la-á. É a única coisa em que tenho confiança. O nosso sublime imperador tem um grande papel a desempenhar no mundo, e é tão virtuoso e tão nobre que Deus não o abandonará e há-de cumprir a sua missão: esmagar a hidra da Revolução, ainda mais terrível desde que encarnou nesse assassino e nesse salteador. É a nós, e só a nós, a quem compete resgatar o sangue do justo... E pergunto-lhe eu agora: com quem poderemos nós contar? A Inglaterra, com o seu espírito comercial, não compreende nem pode compreender toda a grandeza da alma do imperador Alexandre. Recusou-se a evacuar Malta. O que ela quer é ver, procurar na nossa conduta ideias reservadas. Que é que eles disseram a Novosiltzov?... Nada. Não compreenderam, não podem compreender o desinteresse do nosso imperador, que nada quer para ele e tudo faz para bem da humanidade. E que prometeram eles? Nada. E até aquilo que prometeram acabará por não vir a realizar-se. A Prússia já declarou que Bonaparte era invencível e que a Europa inteira nada podia contra ele... E eu por mim, não acredito numa só palavra do que dizem Hardenberg ou Haugwitz. Essa famosa neutralidade prussiana não passa de uma armadilha. Só em Deus confio e no alto destino do nosso augusto imperador. Ele salvará a Europa!...

De súbito calou-se, sorrindo ela mesma, antes de mais ninguém, da veemência das suas próprias palavras.

— Estou persuadido — disse o príncipe com um sorriso — de que se a tivessem mandado a si, minha querida amiga, em lugar, do nosso muito querido Wintzengerode, a esta hora tínhamos tomado de assalto a adesão do rei da Prússia. Quer dar-me uma xícara de chá?

— Com certeza. A propósito — acrescentou ela num tom sereno —, tenho hoje duas pessoas muito interessantes: o visconde de Mortemart; está aparentado com os Montmorency pelos Rohans, um dos mais ilustres nomes da França. É um dos nossos bons emigrados, autêntico! E também o abade Morio. Conhece este espírito profundo? Foi recebido pelo imperador. Conhece-o?

— Terei um grande prazer! Diga-me uma coisa — acrescentou, negligentemente, e como se só naquele momento se tivesse lembrado disso, quando, realmente, esse era o objetivo principal da sua visita. — É verdade que a imperatriz-mãe se interessa pela nomeação do barão de Funke para o lugar de primeiro-secretário em Viena? Esse barão, ao que parece, é uma triste personagem.

O príncipe Vassili pretendia ver nomeado para esse posto um filho seu, e o barão era a pessoa indicada para tal cargo pelas pessoas que procuravam ganhar a influência da imperatriz Maria Fiodorovna.

— O Senhor Barão de Funke foi recomendado à imperatriz pela irmã — foi tudo quanto ela disse em resposta, secamente, e com um ar triste.

Quando Ana Pavlovna pronunciou o nome da imperatriz pintou-se-lhe no rosto, subitamente, a dedicação e o respeito mais profundos e sinceros, ao mesmo tempo que lhe desceu sobre a máscara aquele ar de tristeza que nunca a abandonava sempre que, no decurso de uma conversa, se falava na sua augusta protetora. E acrescentou que Sua Majestade se tinha dignado testemunhar ao barão de Funke muita estima, enquanto o olhar novamente se lhe velava de tristeza.

O príncipe, como que indiferente, mantinha-se calado.

Ana Pavlovna, com a sua finura especial de dama da corte e o seu tato feminino, ao mesmo tempo que dirigia um remoque ao príncipe por ter ousado exprimir-se tão livremente a respeito da conduta de uma pessoa recomendada à imperatriz, procurava de certo modo consolá-lo.

— Mas, a propósito da sua família — disse-lhe ela —, não sei se sabe que a sua filha, desde que frequenta a sociedade, faz as delícias de toda a gente. Dizem que é linda como os deuses.

O príncipe curvou-se em sinal de estima e gratidão. — Costumo dizer muitas vezes de mim para comigo — continuou Ana Pavlovna, depois de um momento de silêncio, aproximando-se do príncipe com um sorriso gracioso, como se quisesse significar que estavam terminadas as conversas sobre assuntos políticos e mundanos e que as confidências íntimas iam principiar —, muitas vezes digo a mim mesma que a felicidade neste mundo é coisa muito desigualmente repartida. Porque seria que o destino lhe deu a si, meu amigo, dois filhos tão belos, à parte o Anatole, o seu benjamim, que não me agrada por aí além — tinha lançado esta observação num tom que não admitia réplica, franzindo as sobrancelhas... —, tão encantadores? Sim, quando o senhor, na verdade, é a pessoa que menos importância liga aos filhos; não os merece.

E teve um sorriso vitorioso.

— Que quer? Lavater diria que eu não tenho a bossa da paternidade — respondeu o príncipe.

— Deixemo-nos de brincadeiras. Quero falar-lhe a sério. Sabe? Estou descontente com o seu, filho mais novo. Aqui entre nós — e um ar de tristeza lhe perpassou pelo rosto —, falaram dele perante Sua Majestade, e lamentam-no, a si...

O príncipe não respondeu, mas ela, lançando-lhe um olhar significativo, aguardava, sem dizer palavra, que ele dissesse qualquer coisa. O príncipe Vassili franziu as sobrancelhas.

— Que quer que eu faça? — acabou por dizer. — Bem sabe que fiz tudo o que um pai pode fazer pela educação dos seus filhos, e o que é certo é que ambos não passam de dois imbecis. O Hipólito, pelo menos, é um imbecil sossegado, enquanto o Anatole é um imbecil turbulento. É a única diferença entre os dois — acrescentou com um sorriso mais constrangido e acentuado que de costume, enquanto as rugas que se lhe formavam em tomo da boca denunciavam mais claramente do que nunca a amargura e a irritação que inopinadamente o invadiam.

— Para que é que as pessoas como o senhor hão-de ter filhos? Se não fosse pai, nada teria a censurar-lhe — disse Ana Pavlovna, erguendo os olhos cismadores.

— Sou o seu fiel escravo, e só a si o posso confiar. Os meus filhos são os empecilhos da minha existência. São a minha cruz, compreendo-o perfeitamente. Que quer?...

Calou-se, mostrando com um gesto que se submetia ao cruel destino. Ana Pavlovna assumiu uma atitude cismadora.

— Nunca se lembrou, meu caro príncipe, de casar o seu filho pródigo, o Anatole? Dizem que as solteironas têm a mania do casamento. Não creio que eu já esteja em idade de ter fraquezas semelhantes, mas o que é certo é que conheço uma criaturinha que é muito infeliz com o pai, uma nossa parente, uma princesa Bolkonskaia.

O príncipe Vassili não respondeu, embora, com o seu golpe de vista e a sua finura de homem de sociedade, desse a entender, num simples movimento de cabeça, que não esqueceria o fato.

— Pois a verdade é que o Anatole me custa por ano à volta de quarenta mil rublos — disse ele, sem que, evidentemente, lhe fosse possível refrear o curso dos pensamentos. Esteve alguns instantes calado. — Que será feito dele, dentro de uns cinco anos, se as coisas continuarem da mesma maneira? Aqui tem a vantagem de se ser pai. É rica, essa sua princesa?

— O pai é riquíssimo e avaro. Vive no campo. Deve ter ouvido falar nele. É um tal príncipe Bolkonski, que se reformou ainda em vida do falecido imperador e a quem chamavam o "rei da Prússia". É um homem bastante inteligente, mas com as suas manias. Não é nada cômodo. A pobre pequena é infeliz como tudo. Tem um irmão que casou há pouco com Lisa Meinen, um ajudante-de-campo de Kutuzov. Deve aparecer hoje por aí.

— Ouça, querida Annette — disse o príncipe, pegando, subitamente, na mão da sua interlocutora e puxando-a a si. — Arranje-me isso e eu serei o seu muito fiel escravo para sempre: o seu "escrafo", como o meu estaroste costuma escrever nos seus relatórios: com um f. Se é de excelente família e rica, não é preciso mais nada.

E com os seus gestos fáceis, familiares e graciosos que tanto o distinguiam, o príncipe inclinou-se, apertou a mão da dama de honor, beijou-a, e de novo se enterrou na sua macia poltrona, desviando a vista.

— Espere — disse Ana Pavlovna, pensativa. — Ainda hoje mesmo falarei à Lisa, a mulher do jovem Bolkonski. E talvez as coisas se arranjem. Na sua família começarei a aprender para solteirona.

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