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Primeiro Capítulo: Da Terra à Lua

Primeiro Capítulo: Da Terra à Lua

Capítulo 1:
O Clube do Canhão

Da Terra à Lua Texto Integral
180 páginas

ISBN:


Preço: R$ 5,05

Durante a guerra federal dos Estados Unidos fundou-se, na cidade de Baltimore, mesmo no centro do Maryland, um novo clube de grande influência.

É notória a energia com que se desenvolveram os instintos militares por entre aquela população de armadores, de negociantes e de maquinistas. Insignificantes mercadores saltaram por cima do balcão e acharam-se de improviso transformados em capitães, em coronéis e até em generais, sem terem passado pelas escolas de aplicação de West-Point; em curto espaço foram na arte da guerra dignos rivais dos colegas do velho continente, e, à imitação destes, alcançaram, à força de prodigalizar balas, milhões e homens, brilhantes vitórias.

Mas em que os americanos excederam singularmente os europeus foi na ciência da balística; e não porque as armas americanas atingissem mais elevado grau de perfeição, senão porque apresentaram dimensões desusadas, e tiveram por consequência alcances correspondentes e até então desconhecidos.

Pelo que diz respeito a tiros rasantes, emergentes ou em cheio, a fogos de escarpa de enfiada ou de revés, já não têm, ingleses, franceses nem prussianos coisa alguma que aprender; mas os canhões, obuses e morteiros europeus são apenas pistolas de algibeira, comparados com os formidáveis maquinismos bélicos da artilharia americana.

Não deve causar espanto o que deixamos dito. Os ianques, que são os primeiros mecânicos do mundo, nascem engenheiros como qualquer italiano nasce músico, ou qualquer alemão, filósofo transcendental; portanto nada mais natural do que vê-los demonstrar na aplicação à ciência da balística o audacioso engenho de que são dotados.

Assim se explicam esses gigantescos canhões, que, muito menos úteis que as máquinas de coser, são pelo menos tão admiráveis e decerto ainda mais admirados. Os maravilhosos inventos, neste gênero, de Parrott, de Dahlgreen e de Rodman são bem conhecidos; os Armstrong, os Palliser, os Treuille de Beaulieu não tiveram mais remédio do que curvar-se vencidos perante os seus rivais de além-mar.

Tudo isto deu causa a que, durante a terrível luta entre os partidários do norte e os do sul, ocupassem os artilheiros em toda a parte o primeiro lugar; celebravam-lhes os jornais da União os inventos com entusiasmo, e sem excetuar o mais insignificante dos lojistas ou o mais ingênuo dos boobies, todos quebravam a cabeça dia e noite a calcular trajetórias impossíveis.

Ora quando a uma cabeça de americano acode uma ideia, busca logo o seu possuidor segundo americano que a aceite: chegam a três, elegem logo presidente e dois secretários; quatro, nomeiam arquivista e funciona a mesa; cinco, convocam-se em assembleia geral, e está constituído um clube. Assim sucedeu em Baltimore.

O primeiro que inventou um novo canhão associou-se com o primeiro que o fundiu e com o primeiro que o perfurou. Tal foi o primitivo núcleo do Clube do Canhão, que um mês depois da sua inauguração contava mil oitocentos e trinta e três sócios efetivos, e trinta mil quinhentos e setenta e cinco sócios correspondentes.

A todos que queriam fazer parte da associação era imposta uma condição sine qua non, a de ter inventado, ou pelo menos aperfeiçoado, um canhão; na falta de canhão uma arma de fogo qualquer. Mas, para dizer a verdade inteira, bem pouca consideração gozavam os inventores de revólveres de quinze tiros, de carabinas girantes ou de sabres-pistolas. Em tudo lhe levavam os artilheiros primazia.

A estima de que é credor qualquer sócio, disse um dia um dos mais entendidos oradores do Clube do Canhão, é proporcional "às massas" do canhão que inventou, e está "na razão direta do quadrado das distâncias a que alcançam os respetivos projéteis!"

Com pequena diferença, era a lei de Newton acerca da gravitação universal transportada às coisas do mundo moral.

Fundado o Clube do Canhão, fácil é imaginar o que produziria neste género o engenho inventivo dos americanos. Os maquinismos de guerra assumiram proporções colossais, e os projéteis foram além dos limites permitidos partir em dois bocados inofensivos transeuntes. Todos estes inventos deixaram a perder de vista os tímidos instrumentos da artilharia europeia.

Forme-se juízo pelos seguintes algarismos.

Outrora "bom tempo era esse" uma bala de trinta e seis, à distância de trezentos pés, varava trinta e seis cavalos apanhados de flanco ou sessenta e oito homens. Era a infância da arte. Desde essa época progrediram muito os projéteis. O canhão Rodman, que, com uma bala de meia tonelada alcançava a sete milhas, facilmente poria fora de combate cento e cinquenta cavalos e trezentos homens. Chegou-se até a discutir no Clube do Canhão a conveniência e possibilidade de submeter a uma experiência solene as qualidades deste canhão monstruoso. Porém se os cavalos consentiram em tentar a experiência, infelizmente a respeito de homens nem um só se ofereceu.

Em todo o caso, o que é fora de dúvida é que o efeito destas armas era extremamente mortífero e que por cada tiro caíam os combatentes como espigas sob a foice do ceifeiro. Que valiam, comparados com tais projéteis, aquela famosa bala que, em Contras, em 1785, pôs fora de combate vinte e cinco homens, ou aquela outra que, em Zorndoff em 1758, matou quarenta infantes, e o canhão austríaco de Kesselsdorf, em 1742, que por cada tiro derrubava setenta inimigos?

Que importância tinham esses surpreendentes fogos de Iena ou de Austerlitz, que decidiram da sorte de uma batalha? Durante a guerra federal na América viram-se coisas muito mais de pasmar! No combate de Gettysburg, um projétil cônico lançado por um canhão raiado feriu cento e setenta e três confederados, e, na passagem do Potomac, uma bala Rodman mandou para um mundo evidentemente melhor duzentos e quinze partidários do Sul. Não é menos digno de menção um formidável morteiro inventado por J. T. Maston, sócio distinto e secretário perpetuo do Clube do Canhão, cujos efeitos foram sem comparação mais mortíferos, visto como, do primeiro tiro de experiência, matou trezentas e trinta e sete pessoas; verdade é que o morteiro rebentou!

Que havemos de acrescentar a estes números já de per si tão eloquentes? Nada. Assim, por certo, será admitido sem contradição o seguinte cálculo apresentado pelo estatístico Pitcairn, que dividindo o número das vítimas de tiro de bala pelo dos sócios do Clube do Canhão, demonstrou que cada um destes tinha morto em "média", dois mil trezentos e setenta e cinco homens e uma fração.

Para quem refletir em tal algarismo, fica evidente que a única preocupação daquela sociedade científica era a destruição da humanidade, com um fim filantrópico, o aperfeiçoamento das armas de guerra, consideradas como instrumentos de civilização. Era uma reunião de anjos exterminadores, e afora isto, as melhores pessoas do mundo.

Cumpre-nos acrescentar que estes ianques corajosos a toda a prova, não se ficavam em fórmulas e experimentavam com o próprio corpo. Havia no clube oficiais de todas as graduações, de tenente a general, militares de todas as idades, dos que debutavam na carreira das armas, como dos que iam já encanecendo sobre os reparos. Muitos tinham ficado nos campos de batalha, cujos nomes estavam inscritos no livro de honra do Clube do Canhão, e dos que tinham voltado a maior parte trazia no próprio corpo sinais indiscutíveis de intrepidez. Muletas, pernas de pau, braços articulados, mãos de gancho, maxilas de caoutchouc, crânios de prata, narizes de platina... a coleção era completa. O supradito Pitcairn calculou também que no Clube do Canhão havia um pouco menos de um braço por quatro pessoas e somente duas pernas por cada seis sócios.

Mas os valentes artilheiros pouca importância ligavam a semelhantes ninharias, e com legítimo fundamento se ufanavam, quando o boletim da batalha contava o número das vítimas pelo décuplo dos tiros disparados.

Porém um dia, triste e lamentável dia, foi assinada a paz pelos sobreviventes da guerra; cessaram pouco a pouco as detonações, calaram-se os morteiros, os obuses para largo tempo açaimados e os canhões de cabeça pendida, recolheram aos arsenais; as balas empilharam-se nos parques, foram-se apagando as recordações sanguinolentas, brotaram com magnificência os algodoeiros dos campos pinguemente adubados, foram-se fazendo velhos a par das dores e das saudades os fatos de luto, e o Clube do Canhão ficou imerso na mais profunda inação.

Um ou outro trabalhador aferrado e incansável se entregava ainda a cálculos balísticos e fazia seu pensamento dileto de bombas gigantescas e obuses incomparáveis.

Mas sem prática de que serviam teorias vãs?

Por isso as salas do clube viam-se desertas, dormiam os criados nas antecâmaras, os jornais criavam bafio por cima das mesas, ouviam-se tristes roncos, que partiam dos cantos escuros das salas, e os membros do Clube do Canhão, outrora tão ruidosos, agora reduzidos ao silêncio por uma paz desastrosa, adormeciam engolfados em meditações de artilharia platônica.

– Que desconsolação – dizia uma noite o valente Tom Hunter, e no entretanto ia-lhe o lume do fogão carbonizando as pernas de pau. – Nada que fazer! Nem uma esperança! Que fastidiosa existência! Onde vai o tempo em que as alegres detonações do canhão nos despertavam todas as manhãs?

– Esse tempo já lá vai – retorquiu o inquieto Bilsby, espreguiçando-se com os braços que já não tinha. – Era um feliz tempo esse. Inventava qualquer o seu obus, e apenas fundido, corria a experimentá-lo no inimigo; quando regressava, ao acampamento sempre tinha ouvido alguma palavra animadora a Sherman ou recebido um aperto de mão de Mac-Clellan! Mas hoje, os generais voltaram aos seus balcões, e em vez de projéteis, expedem inofensivos fardos de algodão! Ai! Por santa Barbara! Está perdido o futuro da artilharia na América!

– É verdade, Bilsby – exclamou o coronel Blomsberry, – são bem cruéis estes desenganos! Deixa a gente um dia os seus hábitos sossegados, exercita-se no manejo das armas, troca Baltimore pelos campos de batalha, porta-se como um herói, e dois ou três anos depois, há de perder o fruto de tantas fadigas, adormecer em deplorável ociosidade, e encaixar as mãos nas algibeiras.

Bem podia falar o valente coronel, havia de ver-se em graves dificuldades, se quisesse dar tal prova de inatividade, e não eram as algibeiras que lhe faltavam.

– E nem uma só guerra em perspetiva! – disse então o famoso J. T. Maston, coçando com o gancho de ferro o crânio de guta-percha. – Não há fuma nuvem no horizonte, e tanto que fazer na ciência da artilharia! Eu que lhes estou falando, terminei esta manhã a épure, com plano, perfil e elevação de um morteiro que havia de fazer mudar as leis da guerra!

– Sim? – replicou Tom Hunter, recordando-se involuntariamente da última experiência do honrado J. T. Maston.

– É verdade – respondeu este. – Mas para que hão de servir tantos estudos levados a cabo, tantas dificuldades vencidas? Não será tudo isto trabalho absolutamente inútil? Parece que os povos do novo mundo se conluiaram para viver em paz, e até o nosso belicoso Tribune chegou a prognosticar iminentes catástrofes exclusivamente causadas pelo escandaloso crescer das populações.

– Contudo, Maston – retorquiu o coronel Blomsberry, – na Europa ainda continua a guerra para sustentar o princípio das nacionalidades!

– E então?

– Então! Talvez se pudesse tentar por lá alguma coisa, e se aceitassem os nossos serviços...

– Pensais seriamente no que dizeis? – exclamou Bilsby. – Fazer balística em proveito de estrangeiros!

– Sempre era melhor do que não fazer nada – retorquiu o coronel.

– Decerto, sempre era um pouco melhor – disse J. T. Maston, – mas nem vale a pena pensar em semelhante expediente.

– E porquê? – perguntou o coronel.

– Porque no velho mundo tem lá umas ideias acerca de acesso e promoção, que estariam em oposição com todos os nossos hábitos americanos. Imagina aquela gente que se não pode ser general em chefe sem ter servido como alferes, o que vale o mesmo que supor que ninguém pode fazer uma boa pontaria, sem ter também sido o fundidor do canhão!Ora isto é nada mais nem menos do que...

– Absurdo! – concluiu Tom Hunter, lascando com o "bowie-knife" os braços da poltrona. – E pois que assim é, não temos mais remédio do que ir plantar tabaco ou destilar azeite de baleia!

– Como assim? – prorrompeu em altos gritos J. T. Maston. – Pois não havemos de empregar estes últimos anos da nossa existência no aperfeiçoamento das armas de fogo? Não há de oferecer-se nova ocasião de ensaiar o alcance dos nossos projéteis! Nunca mais há de iluminar-se a atmosfera com o relâmpago dos nossos canhões! Nem uma só dificuldade internacional há de surgir que nos permita declarar guerra a alguma das potências transatlânticas! Não há de haver algum francês que meta a pique um dos nossos steamers, ou algum inglês que enforque, em menoscabo do direito das gentes, ao menos três ou quatro conterrâneos nossos!

– Não, Maston – respondeu o coronel Blomsberry, – não é para nós tanta ventura. Não! Nem um desses casos sucederá, e que sucedesse, nem ao menos havíamos de aproveitá-lo! Vai-se de dia para dia a suscetibilidade americana. Vamos-nos efeminando.

– É verdade que nos humilhamos! – replicou Bilsby.

– E que nos humilham! – acrescentou Tom Hunter.

– Tudo quanto dizeis é mais que certo – replicou J. T. Maston, ainda com maior veemência. – Pairam na atmosfera mil motivos de guerra e não combatemos! Economizam-se braços e pernas, e em proveito de quem? De gente que não sabe o que lhes há de dar que fazer! Não busquemos mais longe motivos de guerra; pois não é verdade que a América do Norte pertenceu outrora aos ingleses?

– Certamente – respondeu Tom Hunter, espertando furioso o lume com a ponta da moleta.

– Pois bem! – continuou J. T. Maston. – Porque é que a Inglaterra não há de, por seu turno, pertencer aos americanos?

– Nada mais era do que justiça – retorquiu o coronel Blomsberry.

– Pois vão lá propor a ideia ao presidente dos Estados Unidos e verão como são recebidos!

– Havia de receber-nos mal – murmurou Bilsby, por entre quatro dentes que lhe tinham escapado das batalhas.

– Por minha fé – exclamou J. T. Maston, – nas próximas eleições escusa de contar com o meu voto!

– Nem com os nossos – acrescentaram de comum acordo os belicosos inválidos.

– No entretanto – continuou J. T. Maston, em conclusão, – se me não fornecerem ocasião para ensaiar o meu novo morteiro num campo de batalha, dou a minha demissão de sócio do Clube do Canhão, e corro a enterrar-me nos desertos do Arkansas!

– Iremos todos convosco – responderam os interlocutores do ousado J. T. Maston.

Estavam as coisas nestas alturas, exaltavam-se os espíritos cada vez mais, e o clube estava ameaçado de próxima dissolução, quando um acontecimento inesperado veio impedir a realização de tão lastimosa catástrofe.

Logo no dia seguinte àquele em que se realizou a conversação que relatamos, cada um dos membros do clube recebia uma circular concebida nos seguintes termos:

"Baltimore, 3 de outubro. – O presidente do Clube do Canhão tem a honra de prevenir os seus colegas, que na sessão de 5 do corrente lhes fará uma comunicação, que muito há de interessá-los. Em consequência lhes pede que, pondo de parte qualquer outro negócio, concorram à sessão para que são convidados pela presente.

De todos mui cordialmente. – Impey Barbicane. P. G. C."

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