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Primeiro Capítulo: "Drácula" de Bram Stocker

Primeiro Capítulo: Drácula

Capítulo I

Drácula Texto Integral
196 páginas

ISBN:
978-85-66798-12-8


Preço: R$ 3,99

3 de maio. Bistritz — Parti de Munique às 8:35 da noite e cheguei a Viena na manhã seguinte, muito cedo; devia ter chegado às 6:46, mas o trem estava atrasado uma hora. Tive ótima impressão de Budapeste, pelo que pude ver do trem, e pelo pequeno passeio que dei pela cidade. A impressão que tive foi a de estar saindo do Ocidente e entrando no Oriente.

O tempo estava muito bom quando partimos e, ao anoitecer, chegamos a Klausenburg, onde passei a noite no Hotel Royale. Ali jantei, ou melhor, ceei, uma excelente galinha temperada com uma espécie de pimenta vermelha. (Nota: arranjar receita para Mina.) Meu alemão, embora eu o fale mal, me foi muito útil; para falar a verdade, não sei como me arranjaria sem ele.

Antes de partir de Londres, como dispunha de algum tempo, fiz uma visita ao Museu Britânico, onde consultei livros e mapas referentes à Transilvânia. Descobri que a região por ele mencionada fica perto das fronteiras de três Estados: Transilvânia, Moldávia e Bucovina, nos Montes Cárpatos, um dos lugares mais selvagens e menos conhecidos da Europa. Não consegui localizar, exatamente, o Castelo de Drácula, mas verifiquei que Bistritz, a localidade mencionada pelo Conde Drácula, é bem conhecida. Vou recorrer aqui a algumas das minhas notas, pois elas poderão refrescar-me a memória, quando conversar com Mina a respeito das minhas viagens.

A população da Transilvânia se compõe de quatro nacionalidades: os saxões, ao sul, e misturados com os valáquios, descendentes dos dácios; os magiares, a oeste, e os zequelis, a leste e norte. Estou viajando para a região habitada por estes últimos, que se dizem descendentes de Átila e dos hunos. Segundo li, existem ali as mais curiosas superstições do mundo. (Nota: falar ao Conde a esse respeito.)

Não dormi bem, apesar de minha cama ser bastante confortável, pois fui perturbado, por sonhos esquisitos. Durante a noite inteira, um cão ladrou sob a minha janela, e talvez tenha sido ele que me prejudicou o sono, ou, talvez, tenha sido a pimenta que comi no jantar. O fato é que bebi um frasco de água inteirinho, pois senti uma sede ardente.

Somente quando já estava quase amanhecendo foi que consegui conciliar o sono e fui despertado por pancadas repetidas na porta do quarto, de maneira que acho que estava, mesmo, dormindo profundamente.

Como primeira refeição, me deram mais pimenta vermelha e uma espécie de mingau de farinha de milho, chamado "mamaliga", um ovo misturado com carne, que constitui um prato excelente, chamado "impleata". (Nota: pedir a receita, também.)

Tive de comer apressadamente, pois o trem partia às oito horas. A verdade é que ainda esperei dentro dele uma hora inteira, até que ele partisse. Parece que quanto mais a gente avança rumo ao Oriente, tanto maiores se tornam os atrasos. Como é que se arranjarão na China? Durante todo o dia atravessamos uma bela região, entremeada de aldeias ou castelos situados em encostas de colinas íngremes. Em todas as estações, havia grupos de camponeses, metidos em seus trajes regionais. São pitorescos e parecem, à primeira vista, bandidos orientais. São inofensivos, contudo, segundo me disseram. Já escurecera quando chegamos a Bistritz, que é uma velha localidade, muito interessante. Situada praticamente na fronteira com a Bucovina, tem tido uma existência tempestuosa e mostra os sinais disso. Há cinquenta anos, ocorreu aqui uma série de grandes incêndios, que provocaram enormes prejuízos, em cinco ocasiões diferentes. No começo do século XVII, suportou um sítio que durou três semanas, tendo perdido 13.000 pessoas, e as baixas da guerra foram acrescidas dos que morreram de fome e miséria.

O Conde Drácula me havia indicado o Hotel Coroa Dourada, onde eu já era esperado. Uma anfitriã simpática, vestindo trajes regionais, recebeu-me e deu-me as boas vindas.

— É o Herr inglês? — perguntou, fazendo uma mesura.

— Sim — respondi. — Sou Jonathan Harker. Sorrindo, ela fez um sinal a um velho em mangas de camisa, que se retirou e voltou, pouco depois, trazendo-me a seguinte carta:

Meu amigo: Seja bem-vindo aos Montes Cárpatos. Espero-o com ansiedade. Desejo que passe uma boa noite e amanhã, às três horas, tome a diligência que se destina a Bucovina, e na qual já está reservado um lugar para o senhor. No Passo de Borgo, minha carruagem o estará esperando e o conduzirá até mim. Espero que sua viagem de Londres até agora tenha sido boa e estou certo de que será agradável sua estada em meu belo país. Seu amigo,

Drácula.

4 de maio — O dono do hotel, segundo fui informado, recebeu uma carta do Conde, dando-lhe instruções para reservar o melhor lugar para mim na diligência. Quando o interroguei a esse respeito, porém, ele me pareceu reticente e fingiu que não estava entendendo o alemão que eu falava. Isso não podia ser verdade, pois, antes, já o havia entendido perfeitamente; pelo menos, respondeu minhas perguntas como se as tivesse entendido. Ele e sua mulher, a velha que me recebera, entreolharam-se, parecendo amedrontados. Quando perguntei ao dono do hotel se conhecia o castelo do Conde Drácula, tanto ele como sua mulher se resignaram que nada sabiam. Mas já estava tão perto da hora de partir que não tive tempo de fazer perguntas a outra pessoa àquele respeito. Parecia haver um certo mistério, nada tranquilizador. Pouco antes de minha partida, a mulher do dono do hotel foi ao meu quarto e perguntou, sem esconder um grande nervosismo:

— O senhor tem mesmo que ir? Jovem Herr, tem mesmo que ir? Estava tão excitada que custei a entender o que dizia. Parecia não estar mais dominando o pouco do alemão que conhecia e o misturava com alguma outra língua que eu desconhecia. Quando lhe respondi que não podia deixar de ir, pois estavam me esperando para um negócio importante, perguntou de novo:

— Sabe em que dia estamos?

Respondi que era 4 de maio, mas ela sacudiu a cabeça e retrucou:

— É claro! Sei muito bem, mas sabe que dia é hoje?

Como eu lhe dissesse que não estava compreendendo, ela continuou:

— Hoje é a véspera do dia de São Jorge. Não sabe que hoje, quando o relógio bater meia-noite, todos os espíritos malignos do mundo estarão soltos? Que acontecerá, então, com o senhor?

Parecia tão assustada que procurei acalmá-la, mas em vão. Acabou caindo de joelhos diante de mim, suplicando-me que não partisse, que esperasse, pelo menos, mais um ou dois dias. Sua atitude parecia-me verdadeiramente ridícula e acabei ficando nervoso. Reafirmei que negócios importantes exigiam minha partida. Ela se pós de pé, enxugando os olhos, e, tirando um pequeno crucifixo, entregou-mo. Como membro da Igreja Anglicana, fiquei sem saber o que fazer, pois considero tais objetos como idólatras mas, ao mesmo tempo, não queria desapontar a velha senhora, que estava tão bem intencionada e em tal estado de espírito. Creio que ela percebeu minha hesitação, pois tratou de colocar, ela mesma, o crucifixo em meu pescoço, dizendo-me:

— Por amor de sua mãe!

Logo depois, retirou-se do quarto.

Estou escrevendo estas linhas enquanto espero a diligência, já atrasada. Conservo o crucifixo no pescoço. Não sei se é a sua presença ou porque a dona do hotel tenha me contagiado com seu nervosismo, mas o fato é que não estou me sentindo muito à vontade, como habitualmente. Se este caderno chegar às mãos de Mina antes que eu volte para junto dela, aqui lhe deixo meu adeus.

A diligência está chegando!...

5 de maio. Castelo — As névoas da manhã dissiparam-se e o sol já se acha bem alto. Não estou com sono e, como não vou ser chamado senão quando acordar, escreverei até vir o sono.

As minhas impressões da viagem, depois da partida de Bistritz foram bem estranhas e variadas. Quando cheguei junto à diligência, para torná-la, o cocheiro estava conversando com a dona do hotel, sem dúvida a meu respeito, pois me olharam de soslaio. Consegui ouvir, durante sua conversa, diversas palavras muitas vezes repetidas, palavras esquisitas, pois falavam várias línguas. Assim, tirei da valise meu dicionário poliglota, e olhei o significado dessas palavras. A constatação não foi muito alvissareira para mim, pois as palavras eram: "Ordog" — satanás; "pokol" — inferno; "stregoica" — feiticeiro e "vrolok" e "vlkoslak", ambas com a mesma significação, pois uma é eslovaca e outra sérvia: uma espécie de lobisomem ou vampiro. (Nota: indagar ao Conde a respeito dessas superstições.) Quando partimos, todas as pessoas que tinham se reunido em frente da estalagem, e que eram em número considerável, persignaram-se, e fizeram figa pra mim. Com alguma dificuldade, consegui que um companheiro de viagem me explicasse o quê eles queriam: a princípio, esse meu companheiro de viagem não quis explicar, mas, quando soube que eu era inglês, explicou-me que se tratava de uma simpatia contra o mau-olhado. Não era muito agradável para mim, partir assim para um lugar desconhecido, a fim de me encontrar com um homem desconhecido, mas todos pareciam tão bondosos e preocupados comigo, que não pude deixar de me sentir sensibilizado.

Em breve a beleza da paisagem me fez esquecer aqueles temores fantásticos, embora talvez não conseguisse me livrar deles tão facilmente, se soubesse a língua que falavam meus companheiros de viagem. Diante de nós estendiam-se encostas verdejantes, margeadas por florestas e bosques e, no alto das colinas, agitavam-se pomares ou casas residenciais de alguma fazenda. Apesar da estrada ser íngreme, a carruagem seguia com uma pressa que eu não podia compreender, mas era evidente que o cocheiro queria chegar o mais depressa possível a Borgo. Eu fora informado de que aquele caminho é excelente no verão, mas que ainda não fora reparado, depois dos danos sofridos durante o inverno. Sob esse aspecto, é diferente dos caminhos dos Cárpatos, em geral, pois é unia velha tradição que os mesmos sempre estejam em mau estado.

O caminho parecia infindável e o sol foi descendo, cada vez mais, pelo horizonte, e as sombras da noite começaram a aproximar-se. De vez em quando, passávamos por tchecos e eslovacos, com seus pitorescos trajes, mas notei que, infelizmente, o bócio era muito comum.

Algumas vezes, as ladeiras eram tão íngremes que, apesar da pressa do nosso cocheiro, os cavalos tinham de retardar o passo. Eu quis descer e acompanhar a carruagem a pé, como costumamos fazer em nossa terra, mas o cocheiro não permitiu.

— Não, não — disse ele. — Não deve andar a pé aqui. Os cães são muito bravos.

E acrescentou, visivelmente com intenção de fazer gracejo, pois olhou em torno para ver o sorriso aprovador dos outros:

— E o senhor ainda pode ter de se haver com muita coisa desse gênero, antes de se deitar.

A única parada que fez foi momentânea, Para acender os faróis. Quando escureceu de todo, a agitação entre os passageiros tornou-se grande. A carruagem avançava a grande velocidade, mas, ainda assim, os viajantes incitavam o cocheiro a avançar ainda mais depressa. Este, brandindo seu comprido chicote, açoitava os cavalos e os estimulava, aos gritos. As montanhas pareciam aproximar-se. A estrada tinha melhorado; estávamos entrando no Passo de Borgo. Um a um, vários dos passageiros ofereceram-me presentes, obrigando-me a aceitá-los, de modo tão afável que não admitia recusa; eram presentes esquisitos, não resta dúvida, mas todos oferecidos com boa vontade, com uma palavra de carinho, uma bênção e aquela mistura estranha de movimentos supersticiosos que eu vira diante do hotel de Bistritz.

Depois, enquanto o cocheiro se debruçava sobre os animais e os cavalos galopavam pela estrada, os passageiros procuravam olhar através das vidraças, sondando a escuridão. Era evidente que algo de muito excitante estava acontecendo, ou na iminência de acontecer, mas, embora eu tivesse perguntado a todos os passageiros, ninguém quis me dar uma explicação. Essa excitação se manteve durante algum tempo; e, afinal avistamos, diante a entrada do Passo do lado oriental. Nuvens escuras e pesadas cobriam o céu, ameaçando tempestade. Tinha-se a impressão de que a cadeia de montanhas separava duas atmosferas e que havíamos entrado, agora, na tempestuosa. Comecei a procurar a condução que deveria me levar para junto do Conde. Esperava, a qualquer momento, ver o clarão dos faróis, mas só via a escuridão. A única luz era dos faróis de nosso próprio carro. Os passageiros me olhavam com uma espécie de alegria que parecia zombar de meu próprio desapontamento. Eu estava pensando no que deveria fazer, quando vi o cocheiro consultar o relógio e dizer aos outros algo que mal pude ouvir, pois foi dito em voz muito baixa. Pareceu-me, contudo, que dissera:

— Uma hora de adiantamento.

Depois, ele se voltou para mim e disse-me, num alemão pior que o meu:

— Não há carruagem alguma aqui. O Herr não está sendo esperado. Deve ir conosco para Bucovina e voltar amanhã, ou depois. Depois de amanhã será melhor.

Enquanto falava, os cavalos começaram a relinchar e a corcovear, de maneira que o cocheiro precisou dominá-los. E então, entre gritos dos camponeses, todos se persignando, apareceu uma caleça de quatro cavalos diante de nós, que, vindo por trás da diligência, emparelhou-se com ela. À luz dos faróis, pude notar que os quatro cavalos eram todos pretos e tinham magnífica aparência. Eram dirigidos por um homem alto, de comprida barba castanha e grande chapéu preto, que parecia esconder seu rosto de nós. Apenas pude notar o brilho de seus olhos muito vivos.

— Está adiantado esta noite, meu amigo — disse ele ao cocheiro.

O homem gaguejou, em resposta:

— O Herr inglês estava com muita pressa.

Ao que o estranho retrucou:

— Talvez seja por isso que querias levá-lo para Bucovina. Não tentes iludir-me, meu amigo. Sei muita coisa e meus cavalos são velozes.

Enquanto falava, sorria e a luz dos faróis iluminou-lhe a boca, de contorno rude, com lábios muito vermelhos e dentes aguçados e brancos como marfim.

Um de meus companheiros de viagem murmurou para outro o verso de Lenore de Burger:

"Denn die Todten reiten schnell"
("Pois a morte viaja depressa")

O estranho sem dúvida ouviu aquelas palavras, pois olhou, sorrindo. O viajante virou o rosto, persignando-se.

— Dê-me a bagagem do Herr — ordenou o estranho.

E, rapidamente, minhas malas foram colocadas na caleça. Desci do lado da diligência ao longo do qual estava estacionada a caleça e o cocheiro desta ajudou-me a subir, pegando-me pelo braço, com um punho de aço; sua força devia ser prodigiosa. Sem uma palavra, ele sacudiu as rédeas, os cavalos viraram e mergulhamos na escuridão do Passo. Olhando para trás, vi a diligência partir a caminho de Bucovina. Vendo-a sumir nas trevas da noite, correu-me pelo corpo um estranho arrepio de frio e dominou-me a sensação de isolamento; mas senti um manto ser atirado sobre meus ombros, um xale sobre meus joelhos e o cocheiro me disse, em excelente alemão:

— A noite está fria, mein Herr, e meu senhor, o Conde, me incumbiu de tomar conta do senhor. Debaixo do assento há uma garrafa de slivotitz (aguardente de ameixa do país), se o senhor quiser.

Não bebi, mas já era um consolo saber que tinha a bebida ali à mão. Sentia-me confuso e amedrontado. A carruagem avança com rapidez, depois fez uma curva completa e entrou em outra estrada. Minha impressão ~é que o carro passava constantemente pelos mesmos lugares e, realmente, prestando atenção, numa saliência, vi que era isso que estava acontecendo. Não tive, porém, coragem de perguntar ao cocheiro o que significava aquilo. Não adiantaria meu protesto, no caso dele estar mesmo atrasando a viagem, deliberadamente. Tive curiosidade, contudo, de saber as horas e, com um fósforo aceso, consultei o relógio; faltavam poucos minutos para meia-noite. Senti um certo choque, pois creio que a superstição a respeito da meia-noite, tão espalhada, aumentara, com as minhas recentes experiências. Aguardei os acontecimentos, numa expectativa desagradável.

Depois, ouvi um cão latir ao longe. Outros latidos foram respondendo, até que, trazido pelo vento que agora soprava de leve sobre o Passo, chegou aos meus ouvidos um urro selvagem, que parecia vir de muito longe, tão longe quanto a imaginação pode alcançar. Ouvindo o uivo, os cavalos começaram a ficar indóceis, mas o cocheiro lhes falou com voz calma e eles se aquietaram. Depois, muito longe, vindo das montanhas de ambos os lados, começou um uivo mais forte e mais agudo — que afetou da mesma maneira a mim e aos cavalos. Tive vontade de pular da caleça e sair correndo e os cavalos se empinaram e relincharam, sendo preciso o cocheiro empregar toda a sua força para contê-los. Dentro de alguns minutos, contudo, meus ouvidos se acostumaram com aquele som e os cavalos ficaram tão calmos que o cocheiro pôde descer do carro e se colocar diante deles, acariciando-os e falando-lhes no ouvido, como eu tinha ouvido dizer que os domadores de cavalos costumam fazer, e com grande resultado, pois os animais se mantiveram inteiramente calmos, embora ainda tremessem. O cocheiro voltou para o seu lugar e tocou o carro a grande velocidade. Dessa vez, quando chegou à extremidade do Passo, virou, de súbito, para um caminho, que fazia uma curva apertada para a direita.

Árvores margeavam o caminho e, de novo, grandes rochedos surgiram de ambos os lados. Apesar de estarmos abrigados, podíamos ouvir o sibilar do vento. O frio aumentava e a neve começou a cair, em flocos muito finos. O vento ainda nos trazia o latido dos cães, embora cada vez mais fracos. O uivo dos lobos parecia, ao contrário, cada vez mais próximo. Tive receio de que os cavalos partilhassem meu medo. O cocheiro, contudo, parecia imperturbável; olhava ora para a esquerda, ora para a direita, mas eu não conseguia distinguir coisa alguma no meio da escuridão.

De repente, vi brilhar uma luz azulada à esquerda. O cocheiro a viu no mesmo momento; deteve, imediatamente, os cavalos, saltou do carro e sumiu nas trevas. Eu não sabia o que fazer, principalmente com o uivo dos lobos cada vez mais perto; mas, enquanto estava pensando, o cocheiro reapareceu e, sem dizer uma palavra, sentou-se no seu lugar e continuamos a viagem. Creio que adormeci, e comecei a sonhar com o incidente, pois ele se repetiu indefinidamente, e agora, relembrando-me, tenho a impressão de um pesadelo horrível. Certa vez, a chama apareceu tão perto da estrada que, apesar da escuridão que nos cercava, pude distinguir as feições do cocheiro. Ele se dirigia rapidamente para o ponto onde aparecia a chama azulada — que devia ser muito fraca, pois não parecia iluminar o local situado em torno dela — e, apanhando algumas pedras, arranjava-as de certo modo. Certa vez, surgiu um estranho efeito ótico: quando o cocheiro ficou entre mim e a chama não, obstruiu sua luz fantasmagórica. Isso me intrigou, mas o efeito foi momentâneo. Depois, as chamas azuis sumiram entre a escuridão, com o uivo dos lobos em torno de nós, como se os animais nos estivessem seguindo, num círculo envolvente.

Afinal, houve uma ocasião era que o cocheiro avançou mais do que das outras vezes e, durante sua ausência, os animais começaram a relinchar e pinotear, apavorados. Não compreendi o motivo disso, pois o uivo dos lobos cessara inteiramente; justamente então, a lua, irrompendo entre as nuvens escuras, surgiu atrás de um rochedo e, à sua luz, vi um círculo de lobos, com os dentes pontiagudos e as línguas pendentes. Senti-me paralisado pelo medo.

Todos juntos, os lobos começaram a uivar, como se a lua tivesse algum efeito peculiar sobre eles. Os cavalos empinavam, desesperados, mas o círculo vivo do terror os cercava por todos os lados e eles tinham de ficar dentro dele. Gritei chamando o cocheiro, pois compreendi que a única solução seria tentar romper o círculo dos lobos, e, para ajudá-lo a se aproximar, comecei a gritar e bater com as mãos no lado de fora da caleça, na esperança de assustar os lobos que estavam daquele lado, e dar ao cocheiro uma oportunidade de se aproximar. Como ele chegou, não sei, mas o fato é que ouvi sua voz, dando uma ordem imperiosa e, olhando para a direção de onde partia o som, eu o vi de pé na estrada. Agitou os braços, como que afastando algum obstáculo impalpável e os lobos recuaram. Nesse momento, uma pesada nuvem obscureceu a lua, e as trevas reinaram outra vez.

Quando pude distinguir as coisas de novo, o cocheiro estava entrando na caleça, e os lobos tinham desaparecido. Era tão estranho que um pavor indizível me dominou e tive medo até de falar ou me mexer. Continuamos a subir, descendo às vezes, mas quase sempre subindo. De repente, notei que o cocheiro estava fazendo os cavalos entrarem no pátio de um vasto castelo arruinado, de como nas janelas não vinha um só raio de luz.

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